quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Sugiro a leitura atenta e cuidadosa da carta de James Hillman ao colega analista junguiano carioca Marcus Quintaes. Nela em tom muito pessoal Hillman discute aspectos importantes do seu pensamento sobre a alma humana e de outros pensadores contemporaneos , a respeito da psicoterapia.

(Tradução da carta de James Hillman para Marcus Quintais)


 


 

DIVERGÊNCIAS

(A propósito do Seminário Brasileiro sobre Giegerich/Hillman)


 


 

Tanto Wolfgang quanto eu, somos "filhos de Jung". Ele é nosso ponto comum de origem no contexto de seu seminário. Mas há diversos "Jung" e muitos outros filhos e filhas. Não tenho bem certeza de qual seja a passagem ou a idéia em Jung que represente o ponto de partida de Wolfgang; o meu ponto de partida está no CW/6, onde Jung escreve que a fantasia cria realidade todos os dias, e onde o termo "imagem de fantasia" não deriva, diz ele, da referência a um objeto externo, mas é mais análogo a um uso poético.


 

Em outros lugares, Jung fala sobre os complexos, que constituem a estrutura da psique e são sua fonte energética, como "Deuses". Isto me sugere que a questão toda da psique e, é claro, da psicologia também, não seja somente um tipo de mitologia, mas principalmente de que nossas vidas, tão profundamente enraizadas nos complexos, são melhor apreendidas através dos mitos, mitos definidos aqui como narrativas e/ou rituais onde humanos e Deuses interagem.


 

Sei que deveria indicar aqui as citações correspondentes, mas esta é só uma carta, e estou ficando velho...


 

Quando imagino de forma mais ampla estas idéias de Jung, quando sonho o mito adiante, como ele também disse, vou para a mitologia, para textos nos quais os Deuses aparecem e para aqueles textos que melhor apreenderam a psicologia que chamamos de mitologia, tais como em Kerenyi, Otto e Vemant, etc.

E, se levo a sério a fundamentalidade da imagem (cf. Lopez-Pedraza), devo então ir para Corbin e para Durand também, e especialmente para Bachelard, com o intuito de explorar a realidade tanto imaginal quanto psíquica, baseada na imaginação. Meu "Essay on Pan" ("Ensaio sobre Pan") do começo dos anos '70 segue esta direção.


 

Para mim, o logos da alma não é uma lógica, nem a alma em si é um logos. O logos da alma se apresenta em sua capacidade de dizer-se, de responsabilizar-se por si própria, de descrever-se, de contar sua verdade, e este logos não possui fronteiras (como Wolfgang já disse), e ele não é necessariamente só lógico ou sintáxico. Seu logos, o logos da psique, a psicologia, pode aparecer tanto através de imagens, como de pensamentos


 

Gosto da idéia de Giegerich de que psique é (também) pensamento e fazer alma é (também) pensar. Em sua resposta a Marlan (no ensaio que generosamente contribuiu (p.204) ao livro editado por Marlan em minha honra), Giegerich escreve que nos pensamos em palavras da linguagem e não em imagens. Eu diria exatamente o contrário. As palavras são elas próprias, imagens. A história da linguagem de acordo com Barfield e Vico sugere que metáforas polissêmicas e analogias poéticas dão origem a conceitos denotativos e singularidade de significado.

A linguagem não pode nunca nos libertar de sua mãe primordial, o sensorial, o natural, o físico, a implicação de uma anima mundi – uma alma no, e do mundo natural, mesmo que tal mundo natural seja sempre "não-natural". Por ela ser psique também, ela pensa e imagina e possui uma inteligibilidade própria. (Obs.: aqui eu compreendi que Hillman se refere à mãe primordial da linguagem. É isto ou estou enganada???).


 

Devemos mesmo priorizar palavra sobre imagem ou imagem sobre palavra? Entretanto, se fizermos tal movimento rumo a uma direção ou à outra, quais seriam as conseqüências? A imagem significa, em primeira instância, uma psicologia que é estética e imersa no cosmo. A palavra oferece, em primeira instância, uma psicologia "cortada", como Wolfgang diz, de toda e qualquer noção física, a não ser a mente humana (senão onde encontrar as palavras, a linguagem?), ou divina como João anuncia no Quarto Evangelho.


 

Em nossa divergência, tanto Wolfgang quanto eu, não temos escrito muito sobre terapia nos últimos tempos. Eu faço somente uma "terapia de idéias" em público (textos e conferências), não mais terapia com pessoas individuais. Acredito que ele ainda mantenha sua prática clínica. Pode parecer que eu tenha desertado a prática terapêutica. Porém, como considero que os distúrbios da emoção estão sujeitos a uma re-ordenação através da imagem (o "espectro" de Jung, CW/8), e que uma imaginação perturbada pode ser curada pelo mito, como Vico sugere, eu acredito que estou continuando a fazer terapia.


 

Uma grande divergência diz respeito a como olhamos para a história. E aqui, Marcus Quintaes, eu me dirijo tanto a você, quanto a Wolfgang. Quando se olha para o meu trabalho pelas lentes da cronologia, é então possível descobrir ali algo do início, do meio, tardio, etc. caindo assim na idéia de progresso e regresso, desenvolvimento, bem como conflitos internos entre uma assim chamada "fase" e outra, quer seja ela anterior ou posterior. Então, sempre que aparece em um texto algo diferente daquilo contido em outro texto, tenta-se conciliar este algo como retração ou correção.


 

Entretanto, se olharmos para os trabalhos escritos pelas lentes da imagem, como se fossem quadros ou peças musicais, então eles podem diferir um do outro sem a necessidade de preencher a idéia de consistência cronológica. Cada peça musical composta (digamos, por Villa-Lobos) é única e se sustenta e justifica por si própria, tem sucesso ou fracassa da forma como ela é, e somente se conecta com aquilo que veio antes ou depois a partir de uma perspectiva "externa". Em uma retrospectiva, quadros (digamos, de Picasso), mesmo quando expostos de sala em sala em ordem cronológica, "utilmente" enriquecidos por textos biográficos na parede, continuam, apesar de tudo, "cada um, um". Qual a razão de se olhar para eles através de um olhar genérico, alheio ao pintor – e aos quadros?


 

Esta abordagem, digamos assim, imagística pode também ser aplicada ao estilo de ataque de Giegerich. Imagine-o usando uma faca como paleta, lixas, pinceis duros e pinceladas pretas, espessas e pesadas, p,ara cimentar diferenças, para quebrar convenções. Pense nos começos de Stravinsky, Shostakovich. A agressividade pode ser uma necessidade retórica; de forma que suas devastações de Freud e Jung, ou de mim, não devem ser tomadas literalmente como desagradáveis ou ruins a nível pessoal.


 

Eu realmente penso que Giegerich possui uma percepção apurada da história, e que ele percebe o passado como algo que pode ser, ou que já foi, por assim dizer, vencido, ou pelo menos, superado (aufgehoben). Penso que ele dá passos cronológicos, não somente passos lógicos, – apesar de que ele parece parar em Hegel. O meu trabalho, bem como o de Jung para Wolfgang, pode ser denominado de pré-Hegeliano, mais do que simplesmente não-Hegeliano. Portanto, a posição de Wolfgang, quando afirma que Jung parou no tempo e que eu sou um nostálgico e um escapista do presente momento histórico real, é justificada e pertinente. Vejo uma confluência de lógica e temporalidade em minha compreensão de seu pensamento.


 

Teria ele uma tendência a literalizar o tempo e a história? Minha tendência é imaginar o passado mais como aquilo que Agostinho chamava de memória – a saber, imaginação deitada no tempo passado. "O passado", dizia William Faulkner, "não está morto. Não é nem mesmo passado". Vou ao passado para sementes e ganchos. Retiro dele o que preciso, ignorando geralmente sua "história". Desta forma, sou tanto um classicista quanto um romântico. Tenho menos certeza, creio eu, do que Giegerich quanto a um movimento dialético em frente no pensamento humano.


 

Sabe, Wolfgang considera os mitos clássicos obsoletos. Não estaria ele aqui pensando a) temporalmente, b) literalmente, c) positivisticamente? Os mitos não são obsoletos para as artes, que ainda bebem em sua fonte e nas quais eles ainda aparecem. A própria categoria de "obsoleto" baseia-se em um literalismo temporal. A fuga do determinismo temporal é um dos anseios de muitos de meus escritores favoritos – incluindo Jung e seu trabalho sobre sincronicidade. Para Plotino, é o tempo que está na alma (é um fenômeno psicológico) muito mais do que a alma no tempo.


 

Marcus, por que olhar para o meu trabalho em estágios? Lembra da observação de Picasso? "Eu não me desenvolvo, eu sou". O tempo não muda as figuras e os padrões básicos de um tapete, os temas dominantes que recorrem e nos perseguem vida afora.


 

Por exemplo: o meu lidar com o Dionisíaco já está presente, apesar de não nomeado, em meu livro de 1960, Emotion; bem como na sublime e terrificante atração pelo Mundo Subterrâneo em "Suicide and the Soul (1964) (Suicídio e Alma"); em Dream and the Underworld (Dioniso, Hades, Plutão); nas Conferências de Eranos (1969) onde ele é o movimento conclusivo final; e, é claro, em A Terrible Love for War.

Outro exemplo: minha devoção à anima aparece tanto no livro chamado Anima, em "Betrayal" ("Traição"), nos ensaios sobre prata e mercúrio, (Obs.: apesar de Hillman usar só a palavra "silver", lembro que "quicksilver" é o mercúrio...Deixo a seu critério...), no capítulo sobre anima em Insearch (1967) ("Busca Interior em Psicologia e Religão) e nas conferências mais recentes sobre Afrodite. Estes temas são constantes saturnais, visitados e revisitados em momentos diferentes, para ocasiões diferentes. Eles não progridem. Nenhum deles foi resolvido. Qual a finalidade de tentar organizar suas leituras seguindo a flecha estreita do tempo? O que me faz lembrar a predileção de Wolfgang por esta metáfora (o Wurf, o impulso para a frente da ponta da lança).

Cuidado ao embrulhar uma variedade de produtos em uma única embalagem. É preciso ter claras as categorias usadas para embrulhar. Não use papel jornal. David Tacey e Andrew Samuels, por exemplo, me embrulham numa simplificação jornalística. Mas, às vezes, a coisa embrulhada resiste em ficar dentro da caixa, especialmente se conserva certa energia animal inata que esperneia e se debate, não querendo ser embrulhada em hipótese alguma.


 

Bem, agora, para onde nossas divergências nos conduzem? Sem dúvida, como você aponta, confesso ser movido e inspirado por uma energia qualitativamente marciana. Mas então, querendo ou não, isto forçosamente envolve Venus – e com Venus vem todo um estilo de jogos de sedução e artimanhas, de que Giegerich corretamente me acusa, em meus textos e na psicologia arquetípica. Sim, Ginette Paris também apontou isto há algum tempo, o meu trabalho apóia, representa e é insuflado de paixão por anima, da mesma forma que o trabalho de Wolfgang deriva – deliberadamente, brilhantemente, radicalmente e exaustivamente de e com animus.


 

Provavelmente, Wolfgang e eu temos uma relação divergente com o velho Saturno. Eu tento render-lhe homenagem explorando exaustivamente não somente "o senex", mas principalmente tentando evitar que ele devore meus pensamentos mais profundos até que só reste deles negatividade. Ás vezes, eu tenho a impressão que Wolfgang tornou-se um devoto de Saturno. Quando leio seus ensaios, sua visão saturnal do mundo contemporâneo, a ênfase no tempo, na ordem sintáxica, na negação, e as imagens de faca, bomba, e Actaeon saqueado, ou a própria idéia de sublação, parece haver uma obliteração, um absolutismo, uma hegemonia devoradora, que engole tudo. Manter-me em meu próprio caminho e longe do dele, também é contra-fobico de minha parte. Não quero meu trabalho engolido na resolução universal da lógica Hegeliana. Anima deve permanecer parcialmente "inalcançável".


 

Assim, eu lhe pergunto, o que invalida a sedução como método psicológico? Até os Sofistas e seu sofismo desenvolveram uma psicologia e eles eram mestres esmerados. O que há de errado em erodir categorias com a finalidade de despertar a ambigüidade do intelecto? O que há de errado com uma retórica velada, com o oferecer a promessa de uma nudez clara, distinta e conclusiva, à qual, de fato, nunca se chega; o que há de errado com floreados, excessos, rasgos de emoção, o que há de errado em desaparecer (como Dioniso) quando sofremos um ataque? (Penso que Walter Otto conta muitas estórias sobre o desaparecimento de Dioniso ao sofrer uma ameaça, inclusive indo até as Musas(!) e desaparecendo nas profundezas do mar.


 

Ao longo destes últimos dez, ou mais, anos, tenho sido frequentemente impelido a responder para Wolfgang. Ele é um amigo de longa data, e tenho falhado em honrar esta amizade com uma resposta séria a seus esforços extraordinários. Havia dois obstáculos. Em primeiro lugar, me parecia que – para fazer-lhe justiça – teria que me envolver em um esforço grande demais: dominar argumentos, reler seus textos mais antigos e manter-me atualizado sobre os mais recentes, explicar minhas palavras e intenções. No fundo, eu sei que este tipo de resposta não se faz necessária, visto que ele compreendeu claramente aquilo que escrevi. Não precisa defesa ulterior. Qualquer que fosse minha resposta, isto nos deixaria exatamente onde estamos: amigos que divergem.


 


 

Em segundo lugar, confesso meu sentimento de que uma resposta representaria uma distração do fluxo contínuo de coisas que eu queria iniciar ou completar.


 

Talvez, Marcus, você precisaria saber que eu nunca respondo para comentaristas, nem argumento com críticos, apesar de tentar digerir suas críticas. Posto eu ser tão arraigadamente um "homem de Marte", uma resposta significaria ou uma defesa ou um contra-ataque, e eu prefiro evitar os desafios a um combate. Prefiro imaginar.


 

Responder significa instalar oposição – tal como o seminário que você está propondo, para o qual envio esta carta. Entretanto, oposições – a menos que você as imagine de forma literal como tais, também podem ser imaginadas como caminhos divergentes. Seguimos por caminhos paralelos e nos envolvemos com a geografia dos locais pelos quais passamos, de formas diferentes. Você sabe, tenho me debruçado sobre o "oposicionalismo" em muitos de meus textos, achando-o extremamente tóxico no pensamento sistemático de Jung. Wolfgang também tem trabalhado o assunto, debruçando-se sobre e através do oposicionalismo da herança Cartesiano-Kantiana, com a idéia de sublação e da dialética Hegeliana. Não há argumentação aqui. Além do mais, argumentar é uma modalidade de animus que, como Wolfgang deixou muito claro, não é a minha modalidade. Vamos concluir com um sorriso.


 

James Hillman

Thompson, CT 2008